Palavras que Brotam

29 maio, 2007

E(femme)ra

Corro pela aurora, sentindo o vento fresco na cara e as poucas horas de sono no corpo. O caminho estende-se a perder de vista, ladeando o rio e levando-me para longe. Para trás ficam os problemas, as preocupações, as amarras, as tristezas. Nestes instantes, em que apenas os primeiros raios de sol me conseguem atingir, sou livre.
Os quilómetros passam, voam, na correcta proporção dos pensamentos que fogem do meu controlo e galgam montanhas e atravessam vales para se deterem na tua pele. Respiro fundo a cada passada e imagino-te o cheiro. Apresso-me, sem te conseguir alcançar. O coração bate e a pulsação sobe, entre o suor que me abandona à sorte da tua imagem e a perspectiva da tua presença. Coisa efémera, a liberdade... Pois que - de pensamentos aprisionados em ti - corro de volta para o cárcere, imaginando que são os teus braços que me esperam e o teu regaço que me recebe, numa fresca manhã de Primavera.
"Ciprestes e estrelas", Van Gogh

24 maio, 2007

Chagas (em dor menor)


PENSAMENTO DO DIA - «Se os post-it servem para nos lembrar de alguma coisa, o que usar quando algo - simplesmente - não nos sai da cabeça?»


Sufoco, com a máscara que uso para me esconder...sem saber muito bem de quem e muito menos porquê.

Asfixia-me, esta vontade que tenho de te agarrar num longo abraço de cinema...daqueles genuinamente foleiros, onde - depois de mil peripécias - o plano da câmara sobe e se vai avistando o Bairro que - em peso - nos aplaude, enquanto nós (que nos estamos a borrifar para eles e para a água que nos cai em cima porque a boca de incêndio resolveu rebentar) nos continuamos a beijar, sofrega e apaixonadamente.

Engasgo-me, na torrente de palavras que te quero dizer. E, por isso, calo...calo e sou golpeado por este silêncio que tanto quero quebrar.

Queima-me, este calor que sinto a cada mirada do teu rosto e assusta-me, este descontrole e - mais ainda - o bem que ele me sabe.

Será que sofro? Apenas com as saudades que tenho de te ver...

"Three Ballet Dancers", Degas

18 maio, 2007

Geometrias da Vida


Cabelos escuros como a noite numa pele de lua em que as sardas se espalhavam pelo rosto como grãos de areia num mar de beleza, que se estendia para além da linha do nariz fino. Tinha uma graça própria do sorriso meio envergonhado que ostentava...ou assim lhe parecia a ele.
Esquadrinhava-lhe as formas, sedento de lhe conhecer melhor os conteúdos. Suspirava por cada olhar cruzado e cada tangente em que um virava a cara no preciso instante em que o outro o admirava, sempre de um ângulo diferente. Arquitectava planos, imaginava-lhe as linhas e construía cenários...incapaz de ver as coisas em perspectiva.
Todavia, teve de se conscencializar da inviabilidade dos projectos que havia desenhado na sua mente, quando percebeu que a geometria da vida lhe havia plantado um..."triângulo", no caminho. Procurou refúgio no seu círculo de amigos que o chamaram - tanto quanto possível - para debaixo da alçada da razão. E, contudo - hiperboles à parte - aquela parábola tinha-o deixado triste. Muito triste.
Por vezes (tantas), as mais belas ideias teimam em não sair da maqueta...

Photo: Thomas Mayer

07 maio, 2007

Efeitos Secundários

Trajectos que se cruzaram numa fase irrepetível, mágica, da vida de cada um. Primeiro, são as expressões de admiração pelos rostos há muito não vislumbrados; depois, a descoberta das mudanças de aparência, sejam elas expressas em gramas, kilos, cabelos brancos ou rugas. Por fim, o abraço sentido aquelas amizades que o passar dos anos não enferruja e a ausência não faz desaparecer. Os olhares brilham e os sorrisos soltam-se, desprendem-se dos rostos ainda antes do vinho correr a jorros nos copos que se esvaziam apenas para serem de novo atestados, num vai-vém constante.
Se as indicações sobre os caminhos percorridos nos últimos anos serviu de aperitivo sempre apetitoso, o prato principal estava guardado para mais tarde, traduzindo-se no revivalismo próprio destes momentos. Amores e desamores, professores amados e odiados, conquistas desportivas, quedas e tombos, tiradas fantásticas e memoráveis, comédias e dramas etílicos, risos e choros. Histórias contadas vezes sem conta, por entre gargalhadas expontâneas e emoções puras, imaculadas...como os tempos recordados que já lá vão mas que cá ficaram, na memória e no coração de cada um de nós. Esse "ontem", sempre presente na nossa mente - que tantas saudades deixa e que tanto brilho nos faz chegar aos olhos - será sempre nosso. Apenas se desconfia que os próximos 14 anos venham agravar estes sintomas...secundários :).

"A garrafa de vinho", Picasso

04 maio, 2007

Moleskine

Palavras. Desenhos. Esboços gráficos, pictóricos de episódios reais ou imaginários. Hemingway, Picasso, Sepúlveda...tantos outros! Todos o utilizaram para registar momentos...fossem eles esquiços da vida real ou simplesmente inspirações momentâneas, expontaneidades dignas de nota. Com a ajuda da tinta ou do carvão, liso ou pautado, esteve sempre lá, umas vezes qual barragem abraçando avalanches de criatividade concentradas na ponta de um lápis, de uma caneta, de uma esferográfica; outras tantas como catalizador, condutor de correntes literárias e artísticas menos...electrizantes. Prático, simples, encantador e com algo de misterioso para quem - de fora - observa o seu manuseio, que dele brotem as palavras, semeadas pela caneta e que dele floresça a escrita, adubada pelas emoções.