Palavras que Brotam

28 outubro, 2006

AR - Aqui nascem as Leis

Foto: Pormenor do tecto da Sala dos Passos Perdidos, Assembleia da República
Conhecer as entranhas do local onde muitas decisões sobre os destinos do País são tomadas (ou não), também é cultura.
A visita - guiada - deu direito a vaguear pela sala dos "passos perdidos" (quem a baptizou devia saber o que queria dizer) e a pisar o hemiciclo, local onde os nossos ilustres representantes (ou não) se fazem ouvir (ou não) e se dirigem aos seus congéneres e a todos nós (ou não). Sob o olhar simpático, mas atento, do Major X (chefe da segurança da AR), foi possível tocar um dos cadeirões e ter um vislumbre do Poder, quando vimos o nº2 da República Portuguesa abandonar (escolha cruel do verbo ;) as instalações, acompanhado de 6 guarda-costas.
Tempo ainda para nos perdermos na exclusiva biblioteca "à antiga" - nos seus dois pisos de forro de madeira, mas com todo o conforto e tecnologia - e para deambularmos - quais fantasmas com cartão de visitante - pelos luxuosos corredores, decorados com diferentes quadros de diferentes autores de diferentes estilos e percorridos por intermináveis tapetes vermelhos, presentes também na escadaria e salão nobre.
Sim, sei que até parece mentira mas eles tratam-se bem...sim, sim, não estou a mentir... ;).
OK, confesso que com muito, muito esforço, seria capaz de trabalhar num local daqueles, rodeado de obras de arte, luxo e mordomias ;), mas o que me deixou deveras sensibilizado foram as senhas que são vendidas para o refeitório. Então não é que eu paguei 6 Euros por uma senha de almoço, mas os pobres coitados dos senhores Deputados só pagam 1,95 Euros!?
Lá está...afinal até existe Acção Social no nosso País...mas, se calhar, é capaz de estar ligeiramente enviesada...
NOTA: Obrigado, Jú, pela experiência inesquecível.

23 outubro, 2006

À espera do temporal

"Cais-me nos braços e descubro que te conheço, afinal".
Mirava aqueles olhos de amêndoa e inebriava-se, enfeitiçava-se, perdia-se.
Encontrava-a em si. Encontrava-a nos pássaros, nas casas, nos caracteres de um qualquer código, no outdoor que o autocarro leva para longe, sem que saísse de dentro do seu peito. O olhar meigo e sensual, num misto de exotismo e doçura, era agora omnipresente
Pensava no desejo febril de largar tudo e de a ir buscar, como se cada segundo passado longe da sua beira fosse incontavelmente doloroso. E era.
Bebia as suas palavras e engolia-as. Sorvia-as. Era delas que se alimentava quando não a tinha por perto e nada mais lhe saciava o corpo e o espírito famintos do seu toque.
O "contentamento descontente", o riso estúpido incrustado na face e a inquietude que sentia, assustavam-no.
Mil interrogações lhe assombravam o espírito, mas pelo menos uma dúvida não lhe toldava a mente naquela noite, enquanto - à janela - aguardava a vinda do temporal profetizada no noticiário: não trocaria o desconforto que sentia por nada deste mundo.
Afinal...afinal era ela.
Figures au bord de la mer, Pablo Picasso
© Succession Picasso 2003

19 outubro, 2006

Impulsos


Impulso: Movimento. Acção. Reacção. Proacção.
Fazem parte de nós e têm impacto nas nossas vidas.
Não há como ignorá-los...a verdadeira arte consiste em saber como interpretá-los, quando reprimi-los ou quando a eles nos rendermos.
Quem tiver um manualzinho, que me empreste, por favor, que já me dói a cabeça de tanto encontro com a parede.
E no entanto...ás vezes até pensamos que pode ter sido boa ideia... Quem sabe? ;)
Foto: Zona da OTA/Montejunto - RS

13 outubro, 2006

O Ás do Século XXI

Horário alterado. Agenda de pernas para o ar. Malabarismo de horários e reuniões adiadas. Estômago em greve de apetite. Trabalho amontoado. O olhar no infinito e a cabeça no ar. A vista humedecida. A lágrima cadente no rosto sofrido. O murro na parede e o pontapé no cesto de papéis. O "click cognitivo". O sprint - à chuva - para o táxi. A corrida contra o relógio e contra o trânsito. O elevador que não aparece. A subida dos degraus 3 a 3 e o fôlego em alvoroço. O suor a escorrer-lhe pela testa e a gravata desalinhada. O rubro das emoções e da sua pele. O estrondo da porta aberta.
"Não vás. Fica. Comigo."
"Não posso. Tenho de me apresentar na Base ás 1400. Partimos em missão ainda hoje.", disse ela.
A sua farda azul parecia casar na perfeição com o estado de espírito dele e agora já nem a molha que tinha apanhado por correr à chuva ou o mesmo as gotas de suor conseguiam disfarçar as suas lágrimas. Ela ajeitou o boné na cabeça, puxou o brilho ás asas douradas e, passando por ele, abraçou-o como o tinha feito na noite anterior e em tantas outras. O cabelo estava agora apanhado e os sapatos pretos tapavam-lhe os delicados pés antes desnudados, mas o perfume de mulher, esse, ainda marcava presença.
"Mereces alguém que te possa dar tudo e eu...eu não te posso dar quase nada. Isto é melhor assim."
Voltou a pegar na pasta e na gabardine, deixou as chaves de casa no cinzeiro e deixou-o a ele entregue ao seu sofrimento.
Tinha visto um filme do género em miúdo, mas não se recordava que o final fosse assim. Havia duelos nos céus, explosões e uma história de amor, mas nenhum drama como este...e se a realidade ás vezes supera a ficção, o certo é que naquele momento a sua felicidade tinha voado. Para longe.
Foto: F-16 "Fighting Falcon" - Força Aérea Portuguesa

09 outubro, 2006

Insónia em 2x1.6


Noite. Jimi Hendrix contava a triste história de Joe e do seu crime passional, polvilhando a canção com o virtuosismo da sua guitarra, quiçá, para amenizar o trágico acontecimento relatado. Assim soava do lado de cá das colunas de som.
Deste lado, a hora não era trágica nem tão pouco havia partilha do talento musical do génio.
Ele deambulava naquele espaço de 2x1.6 de um lado para o outro, esperando o sono que não chegava. 1500 metros de natação seguidos de 9 km de corrida tinham-lhe trazido o cansaço ao corpo, mas não a paz ao espírito. As voltas - em autêntica centrifugação - sucediam-se, imitando o passar das horas.
2x1.6. Um pequeno espaço que naquela noite lhe parecia imenso. Despovoado. Uma área limitada, onde não era hábito haver limites. Uma arena rectangular onde corpos se podiam degladiar. Um templo onde oferendas poderiam ser feitas, vezes sem conta...sem sacrifício algum.
2x1.6. Palco de teatro de sonhos, reduzido a apeadeiro de viagens por noites mal dormidas. Até ao amanhecer.
Foto: Rolling Stone

04 outubro, 2006

Miragem

miragem, s.f. ilusão; decepção. (Dicionário Português, Porto Editora).


Agarrava-se às letras das músicas que o velho leitor de CD's lhe mandava, como se de uma tábua de salvação se tratasse. Queria manter-se à tona dos acontecimentos, desse por onde desse.
Fosse ou não agradável, fosse ou não próprio de alguma travessia de deserto, o certo é que as miragens o haviam atacado ultimamente. Partida da mente? Praga bíblica desencadeada contra ele? Enxame de pensamentos suspensos que o castigavam? Local errado à hora errada? Azar do c....? #%$%#%$?
Não sabia...nem tão pouco estava obcecado com tal resposta. Interessava-lhe mais o "porquê" do que o "quê".
O certo é que por quatro vezes em quatro momentos distintos, pensou vislumbrar um oásis no meio do nada e das quatro vezes mordeu o pó da ilusão onde pensava beber a água fresca do seu contentamento. Quatro oásis etéreos onde havia depositado os seus olhos, o seu pensamento e esperaria vir a depositar também o seu coração. Quatro nadas, de onde tudo floresceria. Quatro ilusões, como passes de magia negra.
Haveria mais miragens ao longo do caminho ou estariam os olhos já cansados da ilusão e o espírito já imune a tal fenómeno?
Mais miragens? Ele queria era descanso...
Foto: Tibete - Copyright 1995-2006, Mark Schumacher, www.onmarkproductions.com