Palavras que Brotam

30 setembro, 2006

(O)Dor

Respirava o cheiro dela como quem inala uma substância proibida.
Não se tratava de perfume. Nada que se comparasse a um qualquer químico comprado numa loja à medida do gosto e bolso de cada um.
O cheiro! Aspirava os seus cabelos com as narinas, como se os sorvesse, detendo-se apenas por breves instantes para depois serpentear pelo seu pescoço. Ela soltava um risinho e depois um suspiro, à medida que a pele se arrepiava ante a presença do nariz e lábios exploradores.
O cheiro...sempre o cheiro. Odor inebriante, deleite mágico, instinto animal, apelo irresistível.
Pensava em tudo isto, enquanto agitava levemente o copo e respirava o "nariz" do vinho que se propunha degustar.
Poderia ele viver sem isso?
Cheirava-lhe que não...
L'Abraçada, Pablo Picasso

26 setembro, 2006

Era o andar

Foto: Cindy Sherman
Era de noite. Não sabia ao certo porque tinha ido parar aquela festa barulhenta e cheia de fumo, mas simplesmente não lhe apetecia ir para casa.
Era amiga da amiga da amiga. Era uma sorriso cândido - quase inocente - aquele que, despertando-lhe os sentidos, o fez esquecer a música a martelo e o fumo dos cigarros que empestava o ar.
"Olá!". Era a primeira palavra proferida que instantanemaente ganhou contornos de melodia, à medida que ele percorria o seu olhar expressivo.
Era cool, o seu ar. Descontraído. Era ágil e ligeiramente desajeitado, o seu andar. "Deliciosamente desajeitado", recordou mais tarde.
Era bem disposta e apesar da timidez dele, a conversa evoluiu. O chinfrim da música de plástico levava a que tivessem de aproximar os lábios dos ouvidos e lóbulos um do outro, originando inusitados toques no braço, o que - naquele contexto - o obrigou a reconhecer algum mérito à música bem como ao DJ que a fazia passar em tão altos registos. Já Einstein explicara esse conceito relativo, pensou; porventura inspirado por alguma musa de olhar expressivo e pose descontraída...
Era o sorriso, o andar, a voz, o olhar ou a postura que o fascinava? Era reacção química, empatia mútua ou simpatia genuína? Não era nenhuma destas coisas. Eram todas?
Era tarde. Deixou-se ficar por lá enquanto o calor, o fumo e o cansaço não o conseguiram expulsar. A despedida pareceu-lhe mais emotiva que circunstancial, mas não era altura nem lugar para troca de contactos. Apenas um "até à próxima" que lhe soou reconfortante. Era como se se tratasse de um futuro próximo. Um breve trecho que ele pretendia que tivesse durado apenas uns instantes ou até ao dia seguinte. Assim não aconteceu...mas quando fecha os olhos, o andar desajeitado ainda o persegue. Afinal, era o andar.

23 setembro, 2006

Sagrada Escritura



10:00. Tinha acordado cedo, para o acontecimento que tardava. 1 hora de espera para o protocolo que selaria parte do seu futuro nos próximos 40 anos. Começava a imperar a impaciência entre os actores da cena. Não se tratava de nervosismo - até porque nem se tratava de uma estreia - mas de uma irritação pelo tempo perdido, tendo valido o são convívio entre as diversas partes do negócio para amenizar o ambiente e ajudar a passar o tempo que se esvaía diante dos nossos pulsos.
O ar impávido e sereno procurava disfarçar alguma emoção em preencher e assinar tão importantes documentos e tão chorudos cheques.
No fim, concluída a cerimónia - porque afinal, também se tratava disso - o abraço junto da família vincou-lhe o sorriso para o resto do dia e ainda que nada mais contasse, só esse momento mágico teria feito valer a pena o enorme sacrifício e investimento envolvidos.
O sol escondia-se nos céus, mas iluminava o seu coração.

16 setembro, 2006

Astronomia de bolso


Era navegando nos cabelos dela, à luz dos seus olhos e na miragem do seu sorriso que ele encontraria o seu norte.
Rosa. Dos ventos? Não...haveria nela qualquer coisa de astro celeste e que despertaria o Carl Sagan que havia dentro dele. Talvez uma estrela que brilhasse mais que 1000 sóis e que um dia o guiaria pelos mares revoltos da paixão e o levaria a bom porto, com a calma brisa de pequenos nadas de que é feito um grande amor.
"Aqui tem. Muito obrigado!" Era o empregado que lhe trazia a conta à mesa, interrompendo-lhe a viagem interestelar.
Para já, tratava-se apenas de uma estrela por descobrir, numa galáxia longínqua e sem nome.
Foto: NASA/JPL-Caltech

11 setembro, 2006

Boa sorte, Wolverine!!


Domingo à tarde. O tempo corria com o vagar próprio de quem aguarda a sua vez nas urgências de um hospital. Cerca de 5 minutos para a inscrição e outros tantos para a chamada à triagem. Uma médica pouco feliz com o turno de fim-de-semana preenche novo documento e ordena que se aguarde novamente. Alguns minutos volvidos e nova incursão aos gabinetes médicos para breve auscultação e observação. No regresso à sala de espera, ficou a promessa de chamada para o RX, afinal, o principal motivo de tão bizarro programa de fim-de-semana.
Uma semana passada após aparatoso encontro imediato com o terreno pedregoso da Serra de Montejunto, o corpo teima em ressentir-se, causando dor incomodativa e dificultando a prática desportiva. Por via das dúvidas, aceitou-se a sempre penosa ida ás Urgências para despistar mal maior. Estariam as costelas apenas a queixar-se ou o sangue pisado que ia aparecendo indiciaria perigo? A dúvida subsistia.
A espera não deixava de o fazer divagar. Pensava acerca das feridas do corpo e da alma e de quais seriam mais facilmente curáveis. Tudo depende, concluiu. O aparelho de TV transmitia, em imagem amarelada (estaria também adoentado?) o filme dos X-Men. Pelos vistos, todos tinham problemas...até os mutantes! Uns procuravam salvar o mundo, outros apenas um par de costelas.
"Não respire!". Cerca de 50 minutos após a chegada, a radiação actuou sobre o seu corpo, expondo-o de forma pouco usual. Nova espera. Os X-Men continuavam em apuros, após os...X-ray dele. "Oxalá o desfecho aqui corra melhor", pensou...afinal de contas o Magneto estava a sová-los fortemente e porventura haveria já algumas costelas partidas, no mínimo.
"Aparentemente, não tem nada partido!", exclamou o 3º (!?) médico que o observava a si e - mais - ás radiografias, apresentando um sotaque de Leste e um humor bem mais saudável do que a sua congénere lusa. Ouvida a frase mágica, passada a receita e apenas 1 hora e meia depois da entrada, foi tempo de sair dali a passo apressado. Não era certamente um dos seus spots preferidos e o Domingo não esperava por ele.
Desconhece-se o desfecho do confronto dos X-Men.
Boa sorte, Wolverine! :)

09 setembro, 2006

No Noo Bai

Foto: PhotoMorphine
LX, 23:20. Com o gigante por perto.
A noite quente acompanhava os sons musicais que se faziam ouvir e piscava o olho à esplanada. Lotada. Oportunidade para conhecer o interior da última e tardia descoberta na Capital, antes de tomar de assalto uma mesa recém-desocupada.
Em boa companhia tertuliana, a conversa correu, pedindo meças ao rio que, lá em baixo, tão envergonhado e escondido no escuro, nem um só retrato permitiu...e mesmo que o resto da noite não tivesse sido em alta, só a descoberta deste local prazeiroso, simples mas diferente, já teria feito valer a pena mais uma incursão ás entranhas e arredores do bairro mais alto da cidade.
A regressar em breve.

07 setembro, 2006

Just a Thought


Guardo o gosto do teu hálito e recordo o calor das tuas mãos.
Sinto-as ainda a afagar-me o rosto enquanto miro as pedras preciosas incrustadas no teu.
Reconheço esse riso traquina, esse humor corrosivo, essa sensibilidade sem bom senso, debaixo dessa capa despreocupada.
Será que ainda ouço o que os teus olhos me dizem?
Será que ainda me alimento com as palavras que a tua boca me dá?
Será que ainda vejo o mundo através das (tuas) linhas?
Será que ainda aqueces a minha mão com a tua?
Será que ainda me fazes voar contigo na imensidão do nada?
Será que ainda queres?
E será que eu ainda quero?
Não quero visitar velhas ruínas decrépitas, espaços devolutos, destroços de uma derrocada. Também deixei de construir castelos no ar...eram pouco seguros e é aborrecido habitá-los sozinho. :)
Apenas fiquei curioso em saber como ficaria ali um novo edifício, construído de raíz, com novos alicerces. Just a Thought.

"The Source", Ingres

03 setembro, 2006

O som do Oceano


"Rough Sea at Etretat", Monet
Uma imensa sensação de vazio preenchia-o, na calma melancolia do entardecer.
À beira-mar plantado, as ondas traziam-lhe ecos, recordações da conversa da noite anterior. Sete após sete, a espuma das vagas insistia em pintar de negro o quadro que ele pretendia claro...como uma tela pronta a receber as primeiras pinceladas.
Mais um semi-relacionamento-semi-assumido que resolveu terminar. Um semi-amor a que se tinha acostumado, mas que nunca tinha criado as raízes necessárias a um frondoso relacionamento.
Estaria semi-arrependido? Não. Tanto quanto a vida o tinha ensinado, não havendo certezas absolutas, estava semi-certo do rumo que tinha traçado e da decisão semi-difícil que tinha tomado. Pensar no bem comum, não se resume ao dia a dia e o semi-egoísmo da continuação da "paz podre", deu lugar ao semi-altruísmo de dizer "basta".
Junto a si, as pessoas passeavam, ignorando o que lhe ia na alma e pouco se importando com o seu estado de semi-nudez e aparente semi-consciência, de olhos postos na linha do horizonte.
Perto de si, os seus amigos construiam as suas vidas "a dois" - embalados pelo sopro da felicidade - ou já "a três", embalados pelo sopro da fertilidade. Por vezes, sentia-se algo estranho. Algo a meio caminho entre o último dos moicanos e o primeiro dos otários. Qualquer coisa entre a figura de resistente e a figura de urso, digamos.
Outras vezes, não. Apenas alguém que não gostava de se entregar a uma situação de conveniente semi-felicidade.
O vento frio empurrou-o de volta ao carro, onde a voz de Djavan o recordou da paisagem observada, apenas instantes atrás.
"(...)Amar é um deserto e seus temores,
Vida que vai na sela dessas dores(...)"
Ao sentir que o amor teimava em abandoná-lo, uma imensa sensação de vazio continuava a preenchê-lo, na calma melancolia do anoitecer.

01 setembro, 2006

(Passa) Rápido


O tamanho da força que nos leva é incomensurável.
Não podemos remar ou nadar rio acima...mas podemos escolher o rio pelo qual pretendemos descer a encosta da vida.
Foto: Google