Palavras que Brotam

29 agosto, 2006

No Quarto Crescente


A falta de sono invadia-lhe o corpo, juntando-se ao intenso calor abafado que se fazia sentir no quarto. Janelas abertas, as cortinas ganhavam vida, mexendo-se languidamente ao sabor da tímida brisa.
Procurando orientar-se na claridade espásmica da luz de néon da cozinha, resgatou uma água das pedras do frio e empoleirando-se na janela, sentou-se no parapeito, à semelhança do que costumava fazer quando miúdo. Aparentemente, a janela tinha diminuído desde a sua última visita, mas isso não o demoveu da postura contemplativa com que prescrutou o horizonte inundado de luzes, o clarão da metrópole ao fundo e as estrelas, intimidadas com tanta luz, mas ainda assim resistindo e completando o quadro visual.
Distraído, distante, ausente nos seus pensamentos, o líquido escorria-lhe pela garganta e pelo pescoço abaixo, a cada gole, refrescando-os. Chegou mesmo a puxar do tabaco do bolso da camisa, antes de se dar conta que tinha deixado de fumar. Em breve, o seu recanto iria mudar de sítio, a sua vida iria entrar numa nova fase e nada voltaria ao que era.
Para trás ficaria uma vida inteira. Uma pele que estava agora prestes a cair, sucedendo-lhe uma outra e dando sequência a novo estágio de desenvolvimento.
Outra janela, outras luzes. Outras histórias a outras paredes confessadas ou entre elas vividas. Outro pacto de silêncio com elas celebrado...outros pensamentos? Só as estrelas o iriam acompanhar, pensou. Tímidas, no meio das luzes da ribalta. Como ele.

27 agosto, 2006

Morte Lenta

Foto: Cindy Sherman
Fico um pouco mais surdo, a cada palavra que deixas de dizer.
Fico um pouco mais cego, a cada vez que deixo de ver o teu rosto.
Fico um pouco mais empedernido, a cada vez que me tratas como pedra feia e gasta.
Morro sempre um pouco, a cada vez que te negas a dar vida ao meu desejo.

21 agosto, 2006

Hamlet Arejado



Noite de brisa fresca, mas agradável, em cenário de ...regalar os sentidos.
Elenco jovem, sem estrelas, à excepção das que polvilhavam os céus.
Eis os condimentos para um serão diferente, assistindo a interpretação original de "Hamlet".
Amor, ódio, intriga, conspiração e morte, em mais uma lição Shakespeariana sobre a mente humana e o comportamento dos Homens.

18 agosto, 2006

Vieja Amistad

Vaga de jantares.
Comemorativos ou por razão nenhuma.
Simplesmente jantares. Copos. Cafés.
Dois dedos de conversa entre dois tragos, duas garfadas ou dois bafos.
Actores de peças há algum tempo representadas, companheiros de armas de guerras já passadas, mas não esquecidas. Jogadores de desafios já disputados e equipas já desfeitas. Partidas efectuadas, peripécias tantas vezes relembradas, contadas...de gargalhadas acompanhadas.
Resistentes estóicos ao embrutecimento civilizacional a que nos vamos votando, de casa para o trabalho deambulando, para casa do trabalho regressando.
De jantar em jantar, de encontro em encontro, de café em café, assim vamos lutando.
Obrigado, amigos, por estarem presentes.

17 agosto, 2006

Piratas na Tempestade


Photographer: Ian Britton
Adivinho os teus quentes pensamentos, enquanto divago nos húmidos trópicos das tuas coxas.
Murmuras a reza antiga da luxúria - da qual somos fiéis seguidores - à medida que a borrasca de sensações se aproxima no horizonte e tu navegas nos meus cabelos e traças a rota nas minhas costas.
Dilúvio de prazer, vento de loucura desregrada. Abordagem sem pudores. Peleja sem quartel.
Apodero-me dos teus tesouros e entrego-te os meus. Fazes-me prisioneiro do teu corpo, de onde não quero escapar, por mais que tente sair. Uma e outra e outra vez.
As ondas do oceano de suor invadem-nos...e nele seguimos viagem.

16 agosto, 2006

Alcatrão, para variar

Noite de tertúlia. Jantarada com vagar, em ambiente descontraído e proporcionado - mais uma vez - por generoso anfitrião.
Honrando Baco, o vinho jorrou em provas cada vez mais elaboradas, complexas e exigentes, dados os conhecimentos adquiridos por uns e os anos de "tarimba" de todos.
Por entre impropérios e enxovalhanços de pronto perdoados, a "fuga" consumou-se ás 3 da manhã, ponto de viragem limite para o desafio da manhã seguinte. Cedo!
Primeiro estranhando o químico, mais tarde agradecendo a sua vinda, o organismo recebeu o "Guronsan" ainda em jejum, mas com o substancial pequeno-almoço já na mira. O corpo, já destreinado das maratonas vínicas, digeriu com dificuldade os primeiros km - porventura os mais facéis - fazendo temer o pior para a contagem de montanha que se avizinhava e obrigando a abastecimento de emergência na Praia Grande. Alimentado o corpo com a Bola de Berlim e o imaginário, com os muitos bikinis que por ali se passeavam, foi tempo de encarar a montanha, rumo a um dos locais mais belos, património de todos nós. A escalada, sofrida, corre ainda assim melhor do que o previsto, a ponto de uma senhora - porventura enganada pela cara aparentemente descontraída dos atletas - parar o automóvel à frente dos ciclistas em plena rampa e perguntar se "O «castelo» da Pena é ali para baixo". Fintado o obstáculo, respondida a pergunta - sem parar - e com Monserrate à vista, foi tempo de rumar aos Seteais, pairando no espírito do autor a dúvida sobre se a lenda que deu nome ao local não envolveria antes um ciclista cansado e em plena ressaca ao invés dos amores de uma princesa Moura.
Experiência agradável e para repetir. Fica a promessa de para a próxima - e com o corpo bem dormido e sem resquícios do néctar dos Deuses - tentar alcançar a pedal o palácio, onde - com Pena nossa - não pudémos guiar a desorientada turista, desta vez. Temos PENA!

07 agosto, 2006

Sombras

Photograph by James L. Stanfield© 1998 National Geographic Society.
Ver e/ou ser visto.
Eis ao que se resume e no que se torna algo que em tempos se julgou eterno e agora é apenas etéreo.
Eis o que se constata, numa era de comunicação sem paralelo.
Palco gigante, onde, de quando em vez, apenas um dos actores vislumbra o outro ou a sua sombra.
Ecos de um evento social; visões de um objecto outrora partilhado, à imagem de vidas passadas.
Não. Não existe ruído na comunicação. Antes um silêncio que grita a continuidade da vida que não espera, apesar das sombras se moverem, quando nos distraímos e não contamos com elas.

As baleias assassinas


Podiam ser apenas focas, mas dadas as dimensões consideráveis, há muito que ultrapassaram esse patamar. Moviam-se em grupo, vagarosamente. Seus corpos tremiam e estremeciam o chão movediço que pisavam, a cada passada. Acompanhadas das suas crias, estas guinchavam desalmadamente como se estivessem a ser desmembradas por tubarões, levantando areia a cada repentina passagem. Instalaram-se junto ao posto de observação do incauto cientista, não mais do que a palmo e meio da sua toalha, para ser mais preciso.
Orcas? Nada disso. Estas moviam-se em terra, como referido, e eram seguramente mais barulhentas e corpulentas que as congéneres marinhas. Julga-se mesmo - por razões ainda não estudadas - que estariam já precavidas para um possível período (longo) de escassez alimentar, tal a quantidade de reservas acumuladas
Assassinas? Certamente. Assassinas do bem estar. Assassinas do descanso de quem, a breve trecho iria retomar o ritmo infernal de mais uma temporada de trabalho. Até ao próximo oásis de férias...
Com tantas sereias por aí a dar à costa, algures, ou a cair nas artes de algum afortunado pescador e logo havia de suceder este verdadeiro atentado ambiental.
É nestas alturas que muita gente se questiona sobre se a caça à baleia não fará, nalgumas circunstâncias, algum sentido...

05 agosto, 2006

Deserto


Local inóspito. Árido. Gélido ou tórrido, mas também propício à contemplação e à introspecção. Deserto de idéias? Mente deserta? À parte as idéias para posts - não obstante o retiro sabático das férias - a mente fervilha, qual imagem de dunas ondulando ao sabor do calor.
Do deserto, seja ele da mente ou não, nem sempre brota vida, palavras ou idéias que mereçam ver a luz, de tão obscuras que possam ser, mas num espaço, real ou virtual, onde os elementos são tão rigorosos e o ambiente por vezes tão adverso e hostil, fica a esperança de que essa purga nos purifique, seja caminhando nas dunas sob um calor abrasador, seja percorrendo os tortuosos labirintos do nosso âmago.