Palavras que Brotam

23 agosto, 2007

Dia bom



Olho-te, enquanto dormes. Hesito em te tocar e apenas te devolvo o leve sorriso em finos traços de sonhos que me ofereces, ainda que tu não me devolvas o meu braço que - soterrado em doces embalos - jaz, debaixo de ti, sem reacção ou formigueiro de vida. Com a mão que me resta, coço de baixo para cima, a barba por fazer que - incrustada na face e em tons levemente alvi-negros - me vai lembrando que o tempo, afinal, passa - inexorável - ainda que a gillette não passe por estas bandas há algum tempo.
Lá fora, o Eléctrico anuncia a sua chegada, qual expedição de salvamento que me resgata o braço, no preciso instante em que te mexes e a cortina dançante me vê a soprar um beijo na tua direcção.
O sol vai subindo a parede e a mim...a mim só me apetece descer a tua calçada de pedra nua, passo a passo, sem pressas...mas ainda não. Inclino o olhar para a frente, abro um pouco mais o sorriso para a brisa matinal que a janela expele e sinto que despertas, linda, como a manhã. Fecho os olhos sem sono, mas com vontade. É a tua vez de descobrir o dia que lá fora floresce, o eléctrico que passa, o contraste da minha pele nos lençóis da tua cama, o meu corpo junto ao teu, a felicidade de pequenos momentos como este.
Sinto o sopro de uma frase fresca, nas latitudes do meu ouvido e enquanto abro lentamente os olhos penso como, por vezes, uma expressão pode dizer tanto. É bom viver, por dias destes.

Foto: Carris

www.carris.pt



17 agosto, 2007

Engenharias Marginais

Sentado na barcaça de transporte de materiais para o rio, o engenheiro bebia mais um trago da cerveja oferecida - instantes antes - pelo pessoal do estaleiro. Esperava e exasperava - em vão - pela resolução da avaria do satélite que lhe havia de transmitir as coordenadas correctas para a implantação dos pilares principais da ponte que procurava construir. Olhava a jusante, procurando um ponto de apoio, mas a neblina - que teimava em persistir - impedia-o de o fazer. De tal forma era, que por vezes tinha a sensação de que ele próprio é que não tinha capacidade de enxergar, cego que estava pela sua abnegação à causa de unir as duas margens. Afinal de contas, era tudo o que desejava. Castigado pela fria brisa que soprava rio acima, aconchegou a gola do blusão ao pescoço, assolado por questões que pareciam ultrapassá-lo, não obstante todo o seu empenho.
"As águas podem ser turvas; as correntes, perigosas; os ventos, fortes e gélidos; os solos, arenosos e movediços e a zona, sísmica. A todos os desafios se pode dar resposta; a todos se pode enfrentar com o sorriso intrépido da determinação vincado na face e a vontade férrea de estreitar laços...mas como construir pontes, quando uma das margens insiste em mover-se e afastar-se da outra? E - por mais flexivel que se procure construi-la - haverá estrutura que resista?"
Foto: Lusoponte
Ponte Vasco da Gama: Viaduto Central, Colocação da primeira viga

03 agosto, 2007

Onda Média


O barulho das ondas embalava-o, aconchegado que estava na sombra feita cama e tendo a suave brisa como coberta. O queixume de uma criança ecoava, ao fundo, sem que conseguisse ou sequer tentasse decifrá-lo. Suspirou fundo. O dia amanhecera belo e ele tinha decidido aproveitá-lo na sua plenitude, logo desde as primeiras horas de sol.
Lançou o olhar semi-cerrado - próprio da languidez do momento - à mochila e ao moleskine que, lá dentro, aguardava pacientemente nova vaga de palavras, fossem elas contar sumarentos capítulos, descrever interessantes ficções ou simplesmente desfiar pequenos novelos de nadas...momentos non-sense de aparente despreocupação e paz.
Apeteceu-lhe escrever. O dia sorria-lhe e a companhia proporcionava agradáveis gargalhadas, de quando em vez. Apenas a ausência daquele olhar (de quem guardava já saudades), o impedia de tocar a perfeição. Voltou a inspirar o ar de maresia, pousou a caneta e abandonou novamente o corpo ao embalo das ondas. Afinal de contas, havia ainda que pedalar mais 45 km de regresso a casa. Nada que o assustasse ou fizesse esmorecer a beleza de um dia que, para ser perfeito, só lhe faltava a suave convivência daquele sorriso inebriante, de mão entrelaçada na areia e pontual queixume...como o da criança, ao longe, que se havia finalmente silenciado, devolvendo ao mar a palavra, num discurso que fazia sonhar.