Palavras que Brotam

10 abril, 2006

Neblina na sala


O cemitério de beatas, compulsivamente convertidas à ortodoxia do vício, expeliam o fumo, dando à sala uma áurea misteriosa, mística...qualquer coisa entre um templo e uma cena de um filme dos anos 30.
As negras trincheiras escavadas no seu rosto davam-lhe um look de estrela de cinema decadente, mas faltava-lhe o dinheiro para o cocktail do glamour funcionar.
A pele branca, demasiado branca, realçava ainda mais o ar pouco saudável que aparentava.
Todo o cenário denunciava o déficit de horas de sono, como se se tratasse um chulo de meia-tigela a cantar depoimentos à polícia, debaixo de musculado interrogatório.
Andava triste. Estava preocupado. O trabalho subtraia-lhe o descanso merecido, arrancando-o aos braços da mulher, ao carinho dos amigos, cobrando-lhe pesada caução - em horas e ralações - pelo salário que levava para casa todos os meses.
Naquela noite, o tempo fluiu, à medida que despachava mais um trabalho que alguém no escritório se tinha encarregue de rotular como "muito urgente" e que outro alguém se tinha encarregue de lho oferecer, traindo os seus planos de um serão tranquilo ou de um programa a dois.
Faltava pouco para o fim, quando acendeu mais um cigarro e acabou de rever a matéria, com um sentimento misto de orgulho pela missão cumprida e nojo, pela noite em claro, pelo roubo da sua vida.
O noticiário gritado pelo seu companheiro de sala, interrompeu-lhe os pensamentos. Resolveu esperar alguns minutos.
Correu os cortinados, abriu a janela de par em par e trocou o ar pesado e mal cheiroso pela leve, fresca e inigualável brisa da alvorada. O sol preparava-se para aparecer, quando se lembrou que já não via o nascer do dia há muito, muito tempo. Puxou o cadeirão para a janela, apagou o cigarro e inalou a plenos pulmões o ar renovado que entrava pela sala dentro, apenas interrompido por um ataque de tosse, contido a tempo de não acordar o resto da casa.
Ali ficou, deleitado com o espectáculo, como ficamos todos nós, quando o vemos, como se da primeira vez se tratasse.
Um sorriso solitário inundou-lhe o rosto, à medida que o astro o fazia semicerrar os olhos e o calor lhe visitava, timidamente, as faces.
Virou costas ao quadro vivo que ali se desenhava e foi para o quarto.
Não a quis acordar, apenas a abraçou delicadamente, feliz que estava por estar e tê-la ali.
Há momentos assim, que compensam tudo o resto.

Há quanto tempo não nos sentamos nós a ver o sol a nascer?

6 Comments:

  • Absinto:
    Estes momentos são mesmo uma benção !
    Mea culpa (de também não ter estar tão disponível para a família, amigos, relações coloridas,etc)!
    Alguém disse :"The best things in life are the simple things" e esta afirmação é tão verdadeira!
    Nós todos, na ânsia de sermos reconhecidos pelo valor,por n razões (que todos conhecem já) esquecemo-nos de apreciar tudo aquilo que está á n/ disposição. Seja um amanhecer, seja 1 sorriso de uma criança, seja 1 beijo de um familiar/amigo que não víamos "a long time ago"...

    Um bem-hajas pelo texto com que nos brindaste !

    By Anonymous Anónimo, at 11/4/06 10:08  

  • Obrigado, Absinto.
    Um bem-hajas pela visita e pelo comentário :-)

    By Blogger João, at 11/4/06 10:54  

  • :)

    Obrigada amigo...compadre!
    O texto está muito bom.
    E a mensagem (tão simples) está fantasticamente descrita, através de um reboliço de sensações.
    Continua.

    Beijocas de todos nós...em especial da Catarina.

    Sandra

    By Anonymous Anónimo, at 11/4/06 11:11  

  • Johny Johny...
    cada vez melhor!!! cada vez me orgulho mais de ter insistido para q criasses este blog, mesmo q esse não tenha sido o motivo!
    Para ver o nascer do sol não pode ser num dia de trabalho, com stress, e sozinha...tem de ser depois de uma noite bem agradável, e a dois de preferência...

    By Blogger Luisa Seabra, at 11/4/06 19:58  

  • Sandra:
    Obrigado eu, pela visita e amizade.
    Bjs para toda a família

    Luísa:
    Ajudou muito visitar e comentar o teu. Ainda bem que gostaste!
    Bem...poder, até pode, não é é tão agradável como se for depois de uma noite porreira. A dois? A dois a noite ou a dois o nascer do sol???? ahahahahaahah

    By Blogger João, at 11/4/06 20:51  

  • óbviamente as duas coisas, certo?
    Assim é perfeito!

    By Blogger Luisa Seabra, at 12/4/06 15:56  

Enviar um comentário

<< Home